Contos


Como Num Filme

Dizem que quando se está morrendo, sua vida passa diante dos seus olhos como num filme. Hoje, eu logo descobriria o quanto isso é verdade.
O celular me acordou com um barulho estridente e irritante. Sonolento, eu acionei a função soneca e virei para o lado novamente, dizendo a mim mesmo que dormiria “só mais dez minutinhos”. Foi só o tempo de fechar os olhos e novamente ser despertado. Dessa vez eu sabia que tinha de levantar, não tinha jeito.
Além disso, para ajudar, estava muito frio naquela manhã de inverno em São Paulo. Relutante, obriguei-me a sair do calor das cobertas e peguei uma toalha limpa no closet. Depois fui correndo para o banheiro tomar um banho e escovar os dentes. Eu rapidamente acionei a água quente e aguardei alguns segundos para que esta ficasse na temperatura que gosto. Quando entrei debaixo do chuveiro, agradeci mentalmente pelo calor da água aplacando o frio do meu corpo. Mas, infelizmente não podia me demorar muito, precisava correr para não chegar atrasado ao trabalho, ou meu chefe ficaria uma fera. Sendo assim, terminei meu banho o mais rápido que pude, enxuguei-me e me enrolei na toalha. Depois fui rapidamente à cozinha e coloquei uma xícara de leite para esquentar no micro-ondas; só então voltei novamente para o quarto para me vestir.
Coloquei um jeans, uma camisa de mangas compridas e um casaco; calcei meu tênis e assim eu estava pronto para mais um dia de batalha. Finalmente, peguei minha mochila e levei pra sala onde a deixei no sofá.
Voltando pra cozinha, preparei meu leite com chocolate e fiquei bebericando enquanto observava o movimento da rua lá embaixo através da janela da cozinha. Eram sete horas da manhã, e a cidade já estava em polvorosa, com o seu ritmo habitual de sempre. O frenético vai e vem de carros e pessoas andando nas calçadas apressadas, provavelmente indo para o trabalho. Quando estava terminando meu chocolate quente, uma garoa fina começou a cair e foi se intensificando aos poucos. Mas que ótimo, era só o que faltava pra começar bem o meu dia, pensei.
Voltei ao quarto e muni-me de um guarda chuva antes de pegar a minha mochila e sair para a rua — para a chuva. Iria ser um dia daqueles, típico do inverno em São Paulo. Andei até o meu ponto na Avenida Edgar Facó e fiquei aguardando meu ônibus passar: o Praça Ramos, que pra variar como sempre, já estava lotado.
Lentamente aguardei até consegui entrar e embarquei finalmente. Quase não havia lugar para ficar em pé, pois o ônibus estava apinhado de passageiros — algo também típico do transporte público da maior metrópole do Brasil. Passei a catraca e depois de algum tempo lutando para cruzar o corredor humano, consegui me encaixar próximo à porta de saída dos fundos. Peguei meus fones de ouvido na mochila e acionei o mp3-player para ouvir as músicas que eu havia armazenado na memória do aparelho.
Uma infinidade de paradas depois eu desci em meu ponto próximo à Praça da República no Centro de São Paulo. Como de costume, o movimento ali já estava frenético. Enquanto atravessava a passagem que cruzava toda a extensão da praça até a Avenida Ipiranga, passei por garis limpando as vias de tráfego, bêbados, pessoas que observavam os tanques de peixes e chafarizes — algumas até tiravam fotos. Eu parei no semáforo e aguardei juntamente aos outros pedestres para atravessar a faixa que desembocava diretamente na Rua Barão de Itapetininga. Assim como eu, todos estavam agasalhados e de guarda-chuva para se proteger da garoa que incessantemente caía desde que saí de casa.
Alcancei o outro lado da Avenida e prossegui andando pela calçada em direção à Rua 24 de Abril, onde ficava o prédio da empresa em que eu trabalhava. Felizmente, apesar do trânsito, ainda faltava mais de vinte minutos para as nove horas — eu iria chegar a tempo.
Dobrei a esquina distraído, em meio ao vai e vem de transeuntes apressados e fui atingido no rosto por uma lufada de vento gelado. Eu instintivamente abaixei a cabeça e puxei o capuz do meu casaco pra frente. A garoa continuava caindo, e com o vento, a sensação de frio era ainda maior. Eu segui andando pela Vinte e Quatro de Maio, até que em certo ponto resolvi parar para ver uma vitrine. Estava distraído olhando um tênis quando um estrondo que pareceu vir de lá do final da rua — próximo ao Teatro Municipal —, me trouxe de volta a realidade. Voltei minha atenção na direção de onde viera o barulho, a tempo de ver uma multidão de pessoas correndo assustadas pela rua. Meus instintos me disseram para correr também, fazer o caminho de volta para a Avenida Ipiranga. Tiros começaram a ser disparados, não dava pra saber ao certo o que estava acontecendo. Devia ter sido alguma tentativa de assalto a um dos bancos da rua.
O que aconteceu em seguida foi muito rápido, eu estava correndo em meio ao pânico e gritaria das pessoas que fugiam desesperadas quando alguma coisa me atingiu. Senti um forte impacto e em milésimos de segundos estava mergulhando em direção ao chão que subia violentamente rápido para me abraçar. A queda expulsou cada milímetro cúbico de ar de meus pulmões, e lâminas de dor se irradiaram em minha cabeça — eu havia caído de bruços no chão molhado e batido a cabeça.
Um torpor começou a tomar conta do meu corpo, estrelas dançavam a minha frente e minha cabeça foi ficando cada vez mais leve. Sofri um acesso de tosse e expulsei um líquido escarlate e brilhante de meus pulmões. Minha mão deslizou em direção ao meu peito que começava a doer tão forte como se houvesse uma faca enterrada em minha carne. Meus dedos se enterraram no ferimento aberto e quando olhei pra eles, estavam vermelhos de sangue — eu estava sangrando. Embaixo de mim, senti uma poça se formando, e soube de imediato que estava morrendo. A minha volta, as pessoas ainda passavam correndo; tiros ainda eram disparados a distância. O torpor foi se intensificando, o mundo começou a perder o foco, uma escuridão começou a se fechar ao meu redor, aumentando; até que nada mais vi.
— Deite-se na cama — disse Eva minha tia —, isso, assim... bom garoto. — ela me molestava quando eu tinha dez anos de idade e o pior de tudo era que eu adorava. Tia Eva cuidava de mim enquanto meus pais trabalhavam. Era uma mulher bonita, tinha por volta de uns trinta anos, olhos verdes e cabelos loiros encaracolados abaixo dos ombros.
Quando ela me levava ao quarto dos meus pais, eu já sabia o que iria acontecer. Me pedia para se deitar na cama e com suas mãos, acariciava o meu corpo delgado. Depois ela as enterrava em minhas calças, onde me encontrava duro e me acariciava com sua boca quente; lentamente subindo e descendo. Mas isso foi há tanto tempo que nem sei por que fui me lembrar disso. Deve ser porque no fundo, eu sinto falta da minha tia.
Agora estou em minha festa de aniversário. Foi um dos dias mais felizes de minha vida, o meu pai me deu uma bicicleta maneira. Todos os meus amigos vieram comemorar comigo. Minha tia também veio é claro.
Está tudo passando tão rápido, algumas coisas eu nem me lembrava mais. Espera, eu me lembro desse dia, como não poderia. Foi o mais triste de todos eles: o dia da morte do meu pai. Eu estava na escola quando minha mãe mandou que me buscassem, e quando cheguei em casa, ela me recebeu aos prantos e me contou o que estava acontecendo. Meu pai falecera em um grave acidente de carro. Nem mesmo minha tia pôde me consolar da enorme tristeza que eu senti aquele dia. Mas agora isso parece tão distante, já não dói mais tanto. Devo ter me acostumado com sua ausência.
Que dia é esse agora? Essa festa, espera... é a minha formatura. Estava tão feliz aquele dia vendo o orgulho estampado no rosto de minha mãe; as suas lágrimas de felicidade. Minha tia foi paraninfa e mesmo eu tendo arranjado minha primeira namorada, continuávamos tendo nosso caso secreto. Ela dizia que eu ficava melhor a cada dia — e maior. Bons tempos também esses.
Agora eu acho que estou num hospital, estou aflito, minha mãe não consegue me acalmar. Pois estou aguardando o nascimento daquela que viria ser minha filhinha Vitória. Alice, minha namorada, engravidou quando eu tinha dezenove anos e ainda estava na faculdade. Foi uma época muito boa de minha vida também, como a gente curtiu aquela gravidez enquanto aguardávamos a chegada do bebê que transformaria a vida de todos. Me lembro do seu sorriso largo quando entrei no quarto e a vi com a Vitória nos braços. Ela estava ainda mais linda do que nunca, seu cabelo castanho encaracolado estava preso num coque, e seus olhos cinzentos brilhavam marejados de emoção. Bons tempos que não voltam mais.
Outra festa, eu e meus amigos estamos comemorando num clube. Há sim... é a nossa festa de formatura da faculdade. Eu me formara em Ciências da Computação, como poderia esquecer? Foi um grande dia aquele também. Dia esse que passei ao lado de todos os que amo, minha mãe, a Vitória minha filhinha e a Alice, minha ex-namorada. Minha tia como sempre estava presente também, e ainda nos encontrávamos às vezes, embora ela tivesse se casado. Mas essa é uma outra história.
— É hora de ir, Gustavo! — volto minha atenção em direção à voz e me deparo com um cara alto de cabelos loiros encaracolados. Ele está vestido numa espécie de túnica branca e tem... asas? Me olhando inexpressivamente ele acrescenta: — Estas são suas últimas memórias, em breve você terá que partir comigo.
— Quem é você? — pergunto-lhe apertando os olhos para ele, tentando reconhecê-lo.
— Seu ceifeiro! Você está morrendo.
— Ceifeiro? Como assim, o que é um Ceifeiro?
— Um anjo da morte. Um ceifador de almas.
Meus olhos se entreabrem por um instante e tenho um vislumbre do interior do que parece ser uma ambulância.
— Nós estamos perdendo ele! — ouço um dos paramédicos dizer. Há tensão em sua voz. — Os eletrodos estão carregados?
— Sim, cem joules — diz o outro.
— Vai em frente.
— Afaste-se.
E então os eletrodos são pressionados contra meu peito. Meu torso se arqueia e um pico de elevação é exibido no monitor do eletrocardiograma, para em seguida retornar a uma linha tênue e tremulante.
— Ainda fibrilando!
Eles aplicam uma intravenosa em minha veia e outro choque atravessa meu coração moribundo. Novamente a linha no monitor se eleva e retorna a mesma situação de antes. Eu estava morrendo, nada mais poderia ser feito. Antes que o brilho dos meus olhos se extinguisse, pude ver a tristeza em seus rostos. Haviam feito tudo que puderam para me salvar, mas seus esforços não foram o bastante; minha existência se esvaia lentamente.
Volto para o outro plano a tempo de ver o anjo se aproximando de mim, um clarão se faz e então, nada mais vejo. 

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