sábado, 11 de agosto de 2012

Capítulo Um


 Acordar nos braços de um anjo seria a última coisa que Duda Vasques teria pensado quando tentou se suicidar. Durante sua vida inteira sempre escutou que aqueles que se suicidam vão direto para o inferno. Um lugar de grande sofrimento, onde as almas são eternamente castigadas. Mas, não havia como se lembrar disso agora. Estava indefesa, desmemoriada e assustada. Em sua cabeça existia apenas um grande vazio. Não lembrava sequer o seu nome, quem fora ou como chegara ali.
Olhou para si mesma e viu que usava um vestido longo e branco com mangas compridas, seu cabelo preto oscilava ao vento numa cascata de fios longos e escuros.
Desorientada, reparou que atravessava uma espécie de túnel luminoso a uma velocidade assustadora. A claridade ali era tão forte, tão ofuscante, que se obrigou a ficar piscando para que seus olhos se acostumassem. Só então notou que eles não estavam realmente doendo, que era mais como um reflexo involuntário. Seu corpo parecia estranho, como se não tivesse substância. Não possuía as funções mais básicas, como respirar, por exemplo. E seu coração não mais batia em seu peito. Quando tentou falar, também não conseguiu. Era como se nunca o tivesse feito antes, ou simplesmente esquecera. Seu pânico aumentava, e foi quando reparou que o homem, ou o anjo, estava observando-a.
– Não consegue falar ou se lembrar de quem você era? – perguntou-lhe o anjo.
Duda ouvira-o falar consigo, mas nada do que ele lhe disse fizera algum sentido. Sua mente era um completo nada; um caos.
Ouvira-o dizer mais alguma coisa, e em seguida tocar em sua fronte com dois dedos. E quando o fez, foi como se uma explosão tivesse ocorrido dentro de sua cabeça. Uma enxurrada de lembranças de toda uma vida inundou sua mente, num turbilhão profuso e avassalador. Começou a sentir-se vacilante, distante, como se tudo estivesse perdendo o foco e desvanecendo. Não demorou muito para que perdesse os sentidos outra vez.
Quando abriu os olhos e tudo clareou novamente, viu que o anjo ainda a observava. Era um homem incrivelmente alto, com longas madeixas de cachos dourados caindo abaixo de seus ombros largos, e olhos que eram como duas piscinas azuis. Duda achava que poderia se perder facilmente nelas; fosse outra a ocasião; outro tempo; outra vida. Ela viu também que ele trajava uma túnica branca, ornamentada com arabescos e padrões complexos incrustados de pedras preciosas; braceletes dourados e uma tiara de ametistas na cabeça. Na cintura, usava um cinturão de onde pendia uma bainha com uma espada ao lado esquerdo. As botas eram de couro tachonado nas laterais.
Pois os viventes estão cônscios de que morrerão; os mortos, porém, não estão cônscios de absolutamente nada, nem têm mais salário, porque a recordação deles foi esquecida.
Duda ouvira-o falar e por mais que tenha entendido suas palavras, não compreendera o que ele tentava lhe dizer. Sentia-se diferente agora, como se tivesse renascido para uma nova vida. Tentou respirar fundo, mas era estranho, não conseguia fazê-lo por mais que tentasse. Havia algo muito errado e o mundo ainda era a claridade do túnel passando a velocidade da luz de que ela se lembrava antes de apagar. O que também serviu para compreender que não estava realmente sonhando. Aquilo era real. O anjo era real. E a despeito disso, as duas imensas asas que ele envergava não deixavam qualquer margem pra dúvida.
– Do que está falando? – perguntou, atônita.
– Saberia se alguma vez tivesse lido a Bíblia – respondeu o anjo, franzindo as sobrancelhas. – Diga-me, alguma vez você a leu? – perguntou ele, quase que desafiadoramente.
– Não –, negou Duda. Não via motivos para mentir. Realmente nunca havia lido esse livro. – Eu nunca li a Bíblia. Satisfeito?
O anjo ignorou sua irritação.
– E como eu disse: você saberia se tivesse lido-a alguma vez. Esta citação está em Eclesiastes 9:5. Significa que quando você morre todas as suas recordações, toda a sua memória cessa. Apaga-se.
– Então eu estou... – aquela era uma verdade muito dura e aterradora de constatar. Sentiu que sua bílis poderia estar subindo garganta acima naquele momento. Mas, estranhamente, isso não aconteceu. – Eu estou mesmo morta? – obrigou-se a dizer, sentindo-se arrasada, destruída; suas últimas esperanças se esvaindo.
– É possível – esquivou-se o anjo –, do contrário, o que estaria fazendo aqui?
– Eu não sei – Duda queria gritar, chorar. Mas sabia que não conseguiria. Estava ali e sentia-se viva, mas, ao mesmo tempo era como se não estivesse. – Não faço a menor ideia de como vim parar aqui.
– Tem certeza de que não sabe mesmo? Se procurar bem fundo em sua memória, você vai achar a resposta.
Duda seguiu o conselho do anjo e começou a vasculhar sua memória recém-adquirida, em busca de respostas. De algo que pudesse dar algum sentido àquela loucura toda. Havia muitas lembranças. Algumas eram boas, outras não fazia questão de se lembrar. As melhores com certeza eram da sua infância. Que fora a época mais feliz de sua vida.
Lembrou-se do quanto adorava ir pra casa de campo da família, onde podia correr a vontade pelo terreno da propriedade. Brincar a beira do lago onde nadava todas as tardes, depois que aprendeu a nadar. Amava também o pomar no fundo da casa, havia sempre frutas fresquinhas pra colher e comer. Sua mãe constantemente a encontrava ali, com a roupa suja de sumo. Lembrar-se de sua mãe a entristeceu. Regina sempre se esforçara para criá-la e educá-la da melhor forma possível. Fora sempre tão zelosa e presente. Como será que estaria nesse momento?
Absteve-se de continuar pensando em sua mãe e avançou em suas memórias. Seu primeiro namorado, sua formatura no colégio e a faculdade de veterinária. Sempre teve paixão pelos animais e seu sonho era cuidar deles. Mas, sua vida acabou tomando um rumo diferente e acabou se tornando uma modelo famosa; seu antigo sonho, deixado para trás.
Tudo aconteceu durante um passeio no Shopping com Regina, sua mãe. Um rapaz – olheiro de uma agência de modelos famosa – se aproximou, e abordou-as. Ele elogiou sua beleza e convidou-a para fazer um teste. Pouco tempo depois, Duda estava fazendo seus primeiros trabalhos como modelo e o sucesso foi tão grande que ela foi convidada para desfilar em Milão e Paris, – nos principais circuitos de Moda do mundo. Seu nome virou sinônimo de elegância, sofisticação e sucesso.
Foi no auge de sua carreira que Duda se envolveu com Gabriel, o dono da Beauty Models, a agência que a contratou como sua modelo exclusiva. Mas, a fama e o sucesso trouxeram também uma grande responsabilidade de se manter sempre com sua forma física impecável. O que, com o tempo, acabou virando uma obsessão – aos poucos se transformando em anorexia nervosa –, e consequentemente, sua derrocada. Essas eram duras lembranças; dolorosas lembranças.
Em meio a tantas recordações do seu passado. Uma em especial acabou saltando à mente de Duda. Ela e Gabriel estavam na sala dele na Beauty Models discutindo sobre os contratos com os anunciantes da agência.
– Você está magra demais, Duda, isso não é normal! – advertira-lhe Gabriel, irritado.
– Você tá parecendo a minha mãe falando assim – Duda rebateu.
– Os anunciantes estão te recusando. Eles...
– São uns idiotas – interrompeu-o. – Se eles querem contratar modelos gordas, o problema é deles – argumentou, recusando-se a continuar ouvindo Gabriel falar de sua magreza. – Olha aqui – e apontou para o abdome, apertando em um ponto como se fosse um culote. – Você não acha que eu estou com um pneuzinho aqui dos lados? – estava usando um jeans colado ao corpo e um topezinho, o que deixava sua barriga a mostra. O cabelo preto e comprido e a maquiagem estavam impecáveis.
Gabriel olhou para ela com descrença.
– Duda, não há nada aí. Sua barriga está mais enxuta que nunca. Até demais, eu diria. Você está abaixo do seu peso, meu amor. Será que não está vendo?
– Não dá pra conversar com vocês, né? Você e minha mãe acabam sempre batendo na mesma tecla – desabafou Duda.
– Será que é por que a gente se preocupa com você e com o seu futuro? – rebateu ele. – Será que é demais, pedir pra que você se preocupe um pouco mais com sua saúde?
Duda ficou olhando para Gabriel, sem ter uma resposta praquilo. Sabia que ele estava falando sério, e que assim como sua mãe, sua preocupação também era genuína.
– Está bem. Eu me rendo – disse por fim, erguendo as mãos como que em sinal de rendimento – Vocês venceram.
O rosto de Gabriel se iluminou.
 – Jura, meu amor?
Duda foi até ele e se sentou em seu colo.
– Sim. Eu juro – e os dois se beijaram ardorosamente.
Mas cumprir essa promessa não era assim tão simples quanto Duda imaginava. Obrigava-se a comer, mas quando o fazia, sentia um enorme peso na consciência e ficava se martirizando em frente ao espelho achando-se gorda. Muitas vezes também se forçava a vomitar tudo o que havia comido. E suas brigas com Gabriel começaram a se intensificar, até chegar a um ponto insustentável.
Não foi preciso avançar muito mais em suas memórias para saber a resposta que o anjo queria ouvir.
– Eu sei – disse –, sei como vim parar aqui.

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