sábado, 11 de agosto de 2012

Capítulo Dois


O vazio da sala era claustrofóbico. Já fazia quatro horas que Duda estava sentada no sofá, imóvel. O tempo parecia ter parado. Seu mundo havia ruído como um castelo de cartas. Nada mais fazia sentido.
O restante do dia passou sem que ela tivesse se dado conta. Quando o apartamento se escureceu, nem sequer percebeu, seus olhos continuavam fitando a porta, vidrados, vazios. Fora difícil demais escutar o que Gabriel lhe dissera. Suas duras palavras ainda pareciam ecoar no silêncio que havia recaído no recinto desde então.
Depois que Gabriel se fora, deixando-a ali sozinha, Duda permanecera sentada, numa espécie de torpor. Sem querer fazer nada além de ficar imóvel, quieta. Talvez tivesse gostado de chorar. Sim, teria gostado muito. Mas, estranhamente, nem isso era capaz de fazer. A dor era tão grande em seu peito, mas ela sentia-se seca por dentro, vazia. As lágrimas recusavam-se a aflorar em seus olhos.
O telefone tocou sobre a mesa de canto. Mas o barulho parecia tão distante, era como se não estivesse ali, embora tão perto. Lá fora, o mundo continuava em movimento. O frenético vai e vem dos carros e suas buzinas nervosas. O barulho estridente de uma sirene de ambulância se aproximando, tornando-se mais alto à medida que passava em frente ao seu prédio, para rapidamente se afastar – da mesma forma que surgira –, até não mais se ouvir. A campainha do telefone que continuava tocando insistentemente na sala, até resolver parar. Duda ouvia a tudo sem conseguir se mover; era como se ela fosse uma fera despojada de suas garras e presas; ferida demais pra voltar a se erguer uma vez mais.
Foi só muito mais tarde, quando o barulho da maçaneta da porta a despertou do seu torpor, que Duda voltou a pensar em se levantar do sofá. Quem será agora? Pensou, irritada. Queria ficar sozinha; Queria que o mundo se acabasse; Qualquer coisa que afastasse aquela dor que estava consumindo-a.
– Mãe? – foi tudo que disse assim que a viu surgir momentos depois da porta ter-se aberto.
– Duda – disse-lhe Regina, enquanto corria para abraçar-lhe e beijar-lhe. – O que foi filha? O que aconteceu? Por que é que você está assim?
– Acabou, mãe – sua voz estava frágil; quase um sussurro.
– O que acabou?
– Tudo. Eu e o Gabriel... Ele... – e então seus olhos começaram a se encher de lágrimas, quentes. Não, agora não. Não posso chorar agora. Na frente da minha mãe, não. Ela não merece isso.
– O que ele fez com você, Duda? – indagou Regina. – Olha, se aquele desgraçado tiver feito alguma coisa contigo. Eu mato ele! – os lábios da sua mãe se afinaram quando sua boca se retesou em fúria. Suas narinas se estreitaram, tal qual uma Leoa enfurecida, pronta pra atacar e defender sua cria.
– Ele não fez nada demais. Quer dizer... Ele terminou tudo e... e... – as lágrimas escorreram pelo seu rosto, e sua mãe a abraçou com força.
– Ah, filha, quer saber de uma coisa? Eu estou feliz que isso tenha acontecido. Ele nunca te deu o devido valor mesmo. Você pode ter qualquer rapaz que você quiser. Você é...
Duda a interrompeu.
– Tem outra coisa.
– Como assim, outra coisa? – o rosto de Regina era uma máscara de descrença, e raiva.
– Ele rescindiu o meu contrato com a Beauty Models – disse, vendo o queixo de sua mãe cair. – Eu não faço mais parte do casting da empresa. – suspirou resignada e completou: – Aliás, de nenhuma agência, não é?
– Ah, filha. Eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Mas, por que ele fez isso? Ele não tinha esse direito. Nós tínhamos um contrato que só se venceria lá pelo final do ano. Isso não é justo, eu vou falar com nosso advogado! – Regina estava quase gritando agora, de tanta raiva e frustração. – Aquele moleque! Ele me paga! Mas me paga mesmo! – levantou-se inquieta. – Eu não vou deixar isso barato!
– Está tudo bem, mãe. Ele vai pagar tudo que me é de direito. Se for isso que te preocupa – disse, tentando acalmá-la.
– Mas Duda, a questão não é essa! É a sua carreira que está em risco. Será que você não se deu conta disso ainda? Já pensou o que os jornais vão dizer?
– Já. E não sei se quero me preocupar com isso agora. Eu perdi algo que era muito mais importante pra mim, hoje: o amor do Gabriel. Estou arrasada, mãe – e por um momento as duas ficaram apenas se olhando sem nada dizerem, pois não era necessário. Estava tudo ali, no elo que as unia como mãe e filha.
Foi Regina quem enfim quebrou o silêncio.
– Ele te disse por que te tirou do cast?
– Sim – falou resignadamente, ao mesmo tempo em que sentia como se houvesse uma faca cravada em seu peito, e alguém a estivesse torcendo. – Alegou que eu estava magra demais. Anoréxica, e... – Teve que desviar o olhar de sua mãe. Era difícil continuar encarando-a. A raiva e a frustração de Regina estavam tão evidentes que Duda sentia-se constrangida.
– Foi hoje mais cedo... – E então sua memória se encheu com a lembrança do momento em que abriu a porta para Gabriel aquela tarde. Da forma como seu coração quase explodiu de alegria ao vê-lo surgir em sua frente.
– Oi amor! – disse, animada, enquanto trocavam um beijo rápido. – Você não avisou que vinha. Teria preparado algo pra você! – afastou-se para deixá-lo entrar.
– Só para mim? – Gabriel perguntou ao parar no meio da sala, com uma expressão sombria no rosto. Usava um jeans sóbrio e camiseta branca. Seu cabelo escuro estava penteado, mas algumas pontas se destacavam em rebeldia.
– É. Por quê? Você sabe que eu estou fazendo dieta. Quero emagrecer um pouco mais, pra arrasar na próxima campanha. – sua resposta saiu naturalmente; convicta de que realmente necessitava disso. Vestia apenas um robe rosa, e seu cabelo caía sobre os ombros, despenteado e úmido. Antes de Gabriel chegar, havia acabado de sair do banho e não tivera tempo de secá-lo e penteá-lo como gostava.
– Emagrecer? – disse ele, transparecendo ironia em sua voz. – Emagrecer? Você tem certeza de que realmente precisa disso, Duda? – sua voz agora estava adquirindo um tom de raiva. – Quantas vezes já falamos sobre isso?
– Por que você está falando desse jeito comigo? – não podia acreditar que Gabriel estivesse sendo tão rude. Já tinham brigado outras vezes. Mas, dessa vez, parecia que havia algo mais sério envolvido e de algum jeito, sabia que essa conversa não acabaria bem. Teve certeza disso, assim que ele começou a falar novamente.
– Por que pra mim chega dessa palhaçada, Duda! Eu não aguento mais ficar pedindo pra você parar com essa sua dieta maluca! Você está doente e precisa se tratar! – ele quase gritava agora. Seu rosto estava rígido, nebuloso.
– Você está sendo rude. Não é do seu feitio agir desse modo. Por que está me tratando assim?
Há semanas, Gabriel vinha pedindo para ela interromper a dieta. Argumentando que ela já estava magra até demais, e que, se insistisse nisso, ele a afastaria do cast da agência até que recuperasse sua antiga forma. Mas, para Duda, era exatamente o contrário. Tinha a nítida certeza que devia emagrecer muito mais; não conseguia se sentir bem com seu corpo. E enquanto todos lhe diziam que ela parecia muito magra, achava exatamente o contrário.
– Você acha? Pois eu nem comecei ainda – ele se aproximou, furioso. – Quando foi a última vez que desfilou?
– Eu... – repentinamente Duda dera-se conta de que há muito tempo não desfilava ou fotografava. – Eu acho que foi...
– Você acha? – ele a interrompeu bruscamente e pegou em seu braço.
– Me solta! – exigiu Duda.
Mas, ao invés de soltá-la, ele pegou em seu queixo e aproximou o rosto para olhar bem dentro de seus olhos.
– Você está com Anorexia! Não haverá uma nova campanha! Nenhum cliente quer vincular sua marca a uma modelo esquelética. Será que deu pra entender dessa vez? Fui claro o suficiente?
Duda começou a chorar, sentindo-se profundamente magoada com as duras palavras dele.
– Não adianta chorar. Por que isso não vai mudar em nada o que eu tenho pra te dizer. Então veja se presta atenção dessa vez – ele recuou, mas continuou olhando-a de forma dura.
– O que está querendo dizer com isso...
– Não me interrompa – disse ele bruscamente.  – Você está fora! Está fora da Beauty Models! Não desfila mais para nós!
E repentinamente não havia mais chão, Duda sentiu-se fraca e cambaleou para o sofá.
– Não... Não pode fazer isso!
– Não só posso como vou. E sabe por quê? Por que estou farto de você! Dessa sua teimosia! De sua insistência em não querer enxergar o óbvio!
– Eu vou mudar! Eu vou parar com minha dieta. Vou voltar a me alimentar normalmente. Eu juro! – levantou-se e correu em direção a Gabriel, tentando abraçá-lo, mas ele a afastou.
– Assim como das outras vezes? – ele foi em direção à porta, furioso.
– Não! Por favor, não faça isso. Eu imploro! – Duda correu atrás dele. – Me dá outra chance!
– Não, Duda! – ele abriu a porta e olhou para ela com uma expressão séria. – Não haverá outra chance dessa vez. Está tudo acabado entre nós também. Você não faz mais parte da minha vida. Acabou! – e saiu.
Quando ouviu o som da porta se fechando a sua frente, Duda ficou paralisada, recusando-se a acreditar que o que acontecera ali fora real. Não era possível que tivesse perdido tudo que amava de uma só vez. Em algum momento acordaria, e descobriria que tudo não passou de um pesadelo. Seus passos a levaram até o sofá, onde se deixou afundar em silêncio, e onde Regina a encontrou horas depois.
– E foi isso, mamãe – a lembrança era dolorosa demais. E o fato de ter desabafado com sua mãe não ajudou em nada. – Agora você já sabe tudo o que aconteceu – sentia-se como se seu coração estivesse despedaçado, sangrando.
– Não fique assim, Duda. Nós vamos dar um jeito.
– Que jeito, mamãe? Acabou tudo, não está vendo?
– Não. Não acabou não, filha, e sabe por quê? Por que eu estou ao seu lado. Aliás, como sempre estive. Eu vou te ajudar, e te dar todo apoio que você precisar. Eu nunca a deixarei sozinha.
– Brigada, mãe.
– E sabe qual é o primeiro passo? Você voltar a se alimentar direito. Eu não vou mais te deixar aqui sozinha. Você vai voltar a morar comigo.
– Não começa, mãe. Eu...
Regina a interrompeu.
– Isso não está em discussão. Você vai morar comigo e pronto. Está magra demais, Duda. Não é normal!
– Modelos são magras, mãe.
– Acontece que você está magra demais. Nisso eu tenho que concordar com o Gabriel. O que está pretendendo? Morrer de fome por causa dessa sua obsessão com sua forma?
– Você não entende! Ninguém me entende! Será possível? – repentinamente aquela conversa começava a lhe encher a paciência. Já ouvira o suficiente por um dia. Gabriel havia terminado tudo entre eles, a afastado da agência, e agora sua mãe parecia querer lhe dar o golpe de misericórdia. Tentou se levantar, mas sentiu-se zonza. Não comera quase nada o dia todo.
– Olha aí. Tá vendo? O que foi que eu disse? Precisa se alimentar – dizendo isso, a ajudou a se sentar de volta no sofá. – Espera aqui, eu vou preparar alguma coisa pra você comer.
– Não é necessário, mãe, eu...
– Isso também não está em discussão – e seguiu pra cozinha.
Regina preparou macarrão com molho branco; frango e uma salada de alface, tomate em rodelas fininhas, milho e ervilhas.
– A senhora não precisava ter se incomodado – disse Duda, servindo-se de um pouco da salada após Regina tanto insistir, e ela ter concordado que faria um esforço pra comer pelo menos um pouco.
– Ah. Precisava sim. Faz quanto tempo que você não come direito?
– Isso não importa mamãe – olhava pra salada, mas mesmo estando com fome, não tinha apetite. Havia um nó em sua garganta, e sabia que não iria conseguir engolir nada.
– Para mim importa, sim. Eu sou sua mãe, e quero te ver forte e saudável. Essa sua magreza está me assustando – Regina terminava sua porção de salada e olhava com preocupação vendo Duda mexer em seu prato, mas sem realmente comer nada. – Come pelo menos um pouquinho. Por favor, por mim.
Duda olhou pra sua mãe e sentiu um aperto no coração vendo a expressão de consternação em seu rosto. Olhou pra salada e provou um pouco. Mas enquanto mastigava, parecia não ter sabor algum. Estava insípida, assim como qualquer coisa que provasse naquele momento, tinha certeza.
Também não foi diferente nos próximos dias e meses. Tudo parecia sem graça e os dias passavam um após o outro, cinzentos e sem vida. Era como se nada mais fizesse sentido em sua vida. Sua anorexia piorava – tornava-se mais e mais cadavérica –, e ainda assim, não conseguia se sentir bem quando se olhava no espelho. O fato de Gabriel não tê-la procurado ou ligado nenhuma vez, era apenas mais um agravante.
Duda percebeu que sua vida se transformava cada vez mais em um fardo quase insuportável de carregar, e que sua motivação de continuar existindo começava a minguar. Dia após dia, os pensamentos de tirar sua própria vida e dar um fim ao sofrimento, começaram a preencher sua mente. Mas sua Mãe estava sempre por perto, e nas raras oportunidades que tinha de ficar sozinha, nunca tinha coragem de seguir adiante. O que só aumentava a sua frustração. Mas não hoje. Não mais. Isso tinha que ter um fim.
– Filha! Eu estou indo ao mercado! – a voz de Regina, sua mãe, soou meio distante, da sala.
De onde estava, deitada em seu quarto, Duda ouviu o retinir da porta se fechando e o restolhar da chave virando na fechadura. Era a sua deixa. Sentia-se farta de tudo, daquela vida sem graça; de sofrer por um namorado que nunca mais voltaria para ela. E como seria possível, se ela continuava ainda gorda e feia?
Por mais que todos lhe dissessem que estava parecendo um cadáver de tão magra, Duda sabia que diziam isso só para lhe agradar. Em seu íntimo, percebia que ainda estava gorda. Que outro motivo explicaria o fato de Gabriel tê-la deixado? De não tê-la procurado nunca mais?
Decidiu que essa angústia acabaria de uma vez por todas. E sendo assim, desajeitadamente moveu o seu corpo esquálido para a borda da cama. Mas, ao colocar os pés no chão, sentiu-se tão fraca que o mundo pareceu girar; estrelas dançaram em sua frente, oscilando em meio à escuridão que quase se abateu sobre ela.
Só minutos depois, quando tudo clareou novamente, foi que conseguiu se colocar de pé; sobre pernas trôpegas que ameaçavam não suportar o seu peso. E, após algum tempo, estava cambaleando quarto afora em direção ao banheiro.
– Aí está – disse, fitando os frascos de calmantes no armário do banheiro. – De hoje não passa!
Mas falar era fácil. Fazer era outra coisa bem diferente. Precisou reunir toda a sua coragem para conseguir mover a mão em direção aos frascos. Há dias estivera pensando nisso, mas nunca conseguia ir às vias de fato. Sempre desistia no meio do caminho e voltava pro quarto, onde juntava as pernas contra o peito e ficava lá, ruminando sobre o que havia se transformado sua vida.
Certa vez, Duda achou que conseguiria; abriu a porta do armário e destampou um dos frascos de remédios. Mas na hora exata, acabou desistindo e voltando pro quarto, sentindo-se ainda pior do que antes. Ficou chorando por horas a fio, sentindo-se humilhada e derrotada por sua fraqueza.
Eu consigo, pensou, coragem, Duda, coragem. Deu por si com a mão abarrotada de pílulas de calmantes da sua mãe. Respirou fundo, e tremendo, levou-os a boca. Encheu um copo d’água na torneira e foi engolindo-os aos poucos. Sentindo uma estranha sensação de bem-estar, por finalmente ter conseguido; por finalmente ter encontrado a coragem que por dias estivera buscando. Lágrimas quentes escorriam pelo seu rosto e os comprimidos repentinamente haviam desaparecido de sua mão.
Na terceira rodada, quando estava levando outro punhado de comprimidos à boca, o mundo começou a girar, e Duda sentiu a escuridão e o torpor se apoderando de seus sentidos. Estava fraca demais, e a alta dosagem da droga começou a fazer efeito rapidamente. Ela não sabia como o copo que segurava em sua mão de repente se espatifava no chão; ou como seus pés se feriram nos cacos de vidro, lançando lâminas de dor em direção ao seu cérebro.
Deparou-se com o piso do banheiro aproximando-se violentamente rápido do seu rosto. Sentiu seu beijo gélido e dolorido; seu corpo esparramando-se sobre o chão, numa confusão de membros cadavéricos, pílulas e cacos de vidro.

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